#16 Falar é encadear tempos e espaços perdidos
(sobre memórias, fragmentos e o que fica)
Rosa Montero escreve, em seu belíssimo livro O perigo de estar lúcida, que nós humanos somos pura narração, somos palavras em busca de sentido. Desde que li esse trecho pela primeira vez, fiquei capturada. Pensar no fio de palavras que nos constitui e nessa narrativa que acomodará memórias e reminiscências, é dar lugar para uma construção sempre única.
A vida não é aquela que a gente viveu e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la.
-Gabriel Garcia Márquez
Enquanto planejava esse texto, fui até a minha estante. O objetivo era buscar nos meus livros, algo que pudesse completar essa carta. Depois, percebi que não eram bem os livros que eu buscava. Mas sim, as marcas que deixei -para mim- neles. Lembro que na adolescência, não gostava de riscar ou deixar qualquer vestígio nos meus livros. Eles eram imaculados. Algo mudou no início da vida adulta. Comecei a querer, cada vez mais, deixar rastros no caminho que ia percorrendo. Pequenas pistas de quem eu fui. Como se eu contasse para a Mariana de outro tempo, o que me marcava então. Voltar nesses grifos é como fazer caminho contrário. Uma curiosidade de saber porque aquele trecho tinha sido tão importante naquele momento.
Depois disso, desapeguei de vez dos livros intocáveis. Comecei a deixar rastros mais concretos. No final de alguns, em pequenas frases, dizia dos sentimentos que me acompanharam naquela leitura. Como um mosaico de recordações.
Talvez esse caminho até a minha estante e até as marcas de outro tempo, não tenha sido feito por pura coincidência. Nos últimos dias, me peguei pensando muito sobre o que fica, o que permanece. Vou explicar: Recentemente, tivemos o primeiro encontro do Lacuna, clube de leitura e escrita. O primeiro livro trabalhado foi A outra filha da Annie Ernaux. Nele, a autora resgata seu passado para recontá-lo. Traça um caminho até sua infância. Entra em contato com os vestígios: falas, silêncios, presença e ausência. Aquilo que já foi e aquilo que permanece. O livro soa como um eco. Justamente dessas reverberações passadas de sua história.
E o mais interessante no grupo é que enquanto trocávamos sobre a leitura, cada um dizia a partir de suas próprias reverberações. Os ecos apareciam ali também, mas já eram outros. E sempre singulares. Revelamos, em nossas falas, os traços de cada vivência que nos constitui. Lemos - o mundo- através desses fragmentos, tão nossos.
“O que acontece na infância não tem nome”
Essa foi uma das frases que mais me tocou no livro da Annie. E hoje, escrevendo sobre esses rastros, não posso deixar de pensar na infância e no que permanece dela ao longo da vida. “Existe um fio que sempre nos conecta a esse período” foi o que escreveu um dos participantes do encontro.
Ernaux, ao longo do livro, foi caminhando pelos corredores de suas memórias infantis e dando palavras ao que antes não tinha nome. Como Gabriel Garcia Márquez diz, a vida é aquela que a gente recorda e como recorda para contá-la. Recolher, portanto, os traçados anteriores e nesse percurso também criar novos.
Toda essa caminhada me lembra um processo de análise. Esse que acontece em torno dos vestígios de uma história. A analista faz um convite às palavras. Nelas, se encadeiam todos os tempos de uma vida. Como Elena Ferrante disse em um de seus livros, falar é encadear tempos e espaços perdidos.
O caminho que fiz até minha estante ou aquele que Annie Ernaux faz no livro nos entrega pistas de nós mesmas. Traçados de outro tempo. Por isso a palavra - seja falada ou escrita- tanto me encanta. É através dela que poderemos contornar as lacunas que ficaram de cada memória. Te convido a fazer esse movimento também. Entre retorno e avanço, algo se delineia. Construção paradoxal que toma contorno e possibilita, a cada vez, novas formas de contar nossa própria história.
Correr riscos
e ao fim
arfante
da corrida
voltar-se
para avaliar
o traçado
-Ana Martins Marques - o livro das semelhanças
Algumas recomendações:
✹ A outra filha da Annie Ernaux
✹O livro das semelhanças da Ana Martins Marques
✹Conheça mais sobre o trabalho da artista Rayana Rayo
✹ E uma playlist para te acompanhar na leitura ( ou na escrita de uma carta de resposta, quem sabe ♡):
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Te escrevo em breve!
E adoraria receber seus escritos por aqui também! Me conta como você leu o que escrevi?
Até logo ♥
(📍 Termino essa edição rodeada de livros. Busquei um a um na estante e com curiosidade aguçada, fui de volta aos traços que deixei para mim. As marcas de um outro tempo me dizem que muito mudou, mas muito também permaneceu.)
"comecei a querer, cada vez mais, deixar rastros no caminho que ia percorrendo. pequenas pistas de quem eu fui." mari, que lindo! fiquei emocionada e me identifiquei muito com o teu rastro <3 que bonito resgatar rastros de nós mesmas!
lindo, Mari! o encontro do Lacuna foi maravilhoso, realmente fomos em busca dessas pequenas pistas