#21 "Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens"
(Sobre as imagens que nos povoam - intimamente)
Foi Agnès Varda quem disse a frase escolhida para intitular essa primeira News do ano. Desde que a ouvi a tenho comigo. Na clínica, dia após dia, vejo o consultório sendo preenchido por essas paisagens individuais. Dou margem e abertura para que ganhem contorno, textura, eco, cheiro, som, silêncio.
Ali, revela-se uma imagem feita de letras. Palavras que bordejam uma vida. Cenário onírico que se mistura com o cotidiano. Paisagem composta de sonhos, desejos, medos, angústias, vislumbres. É essa que me interessa. Essa paisagem interna. Sem nome. Sem tempo. Mas que, paradoxalmente, nomeia e localiza.



Análise e a paisagem de si
Enquanto escrevia essa News, conheci as obras surrealistas de Gertrude Abercrombie e não podia deixar de usá-las para ilustrar esse texto. Algo me dizia que costuraria com essa escrita. E quando fui pesquisar mais sobre a artista, percebi o motivo. Em suas pinturas, Gertrude deixa brechas para o enigma de paisagens ilusórias. Em um certo momento ela diz que o surrealismo é mesmo para ela, por ser uma pessoa bastante realista e não gostar de tudo o que vê. Então ela sonha que está mudado. Então muda para o jeito que quer. É isso que suas imagens refletem.
Fico pensando então justamente em um processo de análise, este que desvela pouco a pouco uma paisagem de si. Um percurso acontece por meio da palavra. A cada frase, um novo pedaço do cenário interno vai tomando forma. As palavras, as sílabas, as pontuações… elas são os primeiros contornos. Assim, vai sendo possível um passeio. Analista e paciente caminham lado a lado por um cenário próprio. A história se mostra ali diante das paredes do consultório e reflete de volta. Trata-se de uma escrita que também tem esse certo contorno surrealista, já que acomoda o que é e o que não é. Cabem sonhos e realidades. Cabem também diferentes reinvenções. Como Gertrude nomeia, a partir dessas paisagens é possível sonhar uma mudança.

Paisagem que muda, paisagem que permanece.
Isso me leva também para as últimas semanas. Nesses dias tenho visto minha casa se tornar outra. Estou de mudança e esse processo de empacotar roupas, livros, flores, móveis, levá-los de um espaço para outro, observar ao redor e re (conhecer) o novo lugar que me cerca tem me feito perceber que sim, a paisagem ali fora muda. A disposição dos móveis também. Mas quando eu estiver sentada diante de minha analista é sobre uma outra paisagem que falarei. Essa que conserva tanto de mim e que abriga também tantas coisas novas. Uma que vai sendo construída e descontruída intima e internamente. Talvez seja esse o motivo para escrever nesse momento sobre as paisagens que nos compõem.
Que possamos então voltar os olhos para elas. Pedaço por pedaço de nossa história abrigados nesse espaço sem tempo.
Paisagem estranha e familiar
Infantil e adulta
Doce e amarga
Esse mosaico de nós mesmos.
Cenário construído com fios de memória, contornos de palavras e na linguagem dos sonhos…
Que possamos topar esse encontro com o que é nosso. Olhar bem para essa paisagem que resplandece em cada momento de nossas vidas. É a partir dela que falamos, escutamos, somos.
Não é ali fora que a encontraremos
É preciso olhar para dentro.
Fica aqui o meu convite! Olhemos!
O que sua paisagem te mostra?
✹ Artistas que ilustram essa News:
A artista surrealista Gertrude Abercrombie. Para saber mais sobre ela: Clique aqui!



E a cineasta Agnès Varda. É dela a frase que intitula a News! Foi dita no belíssimo filme As praias de Agnès. AS PRAIAS DE AGNÈS Les plages d'Agnès
✹ Por fim, uma playlist para te acompanhar:
(📍 Termino essa carta em uma noite de sábado. As últimas semanas foram de recesso da clínica e de outros trabalhos. Agora me preparando para a volta, sinto que minha paisagem está receptiva e aberta para encontrar outras. O consultório e a escuta, arejados. Espero que essa carta possa ficar como um vislumbre dos encontrar que virão. Talvez tenha sido o novo ano e seu tom de recomeço que movimentaram essa escrita! Mergulhemos!)
Me conta como você leu o que escrevi? Pode ser aqui nos comentários, pelo Instagram ou por e-mail! Vou adorar receber uma carta de volta e ter vislumbre das suas paisagens!
Até breve ♥
obrigada por compartilhar essa artista incrível!
“Paisagem composta de sonhos, desejos, medos, angústias, vislumbres. É essa que me interessa. Essa paisagem interna. Sem nome. Sem tempo. Mas que, paradoxalmente, nomeia e localiza.” lindo lindo, mari 🤍💐