Demorar-se nos detalhes é uma forma de se aproximar da vida
(Georgia O'Keefe, Susan Sontag, Freud, flores, janelas e o olhar)
O que te inspira?
Pergunta simples.
Será mesmo?
Sou apaixonada pelas pinturas da Georgia O’Keefe. Tudo ali me encanta: o laço entre concreto e simbólico, a natureza representada com cores suaves e ao mesmo tempo intensas, o contorno onírico e sublime. É por isso que volta e meia busco saber mais sobre suas inspirações ao criar. Foi assim que me deparei com um texto muito bonito intitulado Como ser um artista, de acordo com Georgia O’Keefe. Logo na primeira lição, uma instrução sublime:
Observe o mundo ao seu redor – de perto e com fome.
Na mesma hora fui levada de volta a uma conversa que tive com minha professora de cerâmica. Ela contava sobre o processo artístico e o quanto ele está atrelado aos detalhes. Contava, inclusive, de um exercício que fez certa vez em um curso. O convite que ela recebeu foi: Antes de criar qualquer coisa, ande pelas ruas, observe o mundo ao redor, o formato das árvores, as cores das flores - como uma cor se transforma em outra? E depois, só depois, vá criar.
Saí dessa aula também prestando atenção nos detalhes do caminho de volta para casa. Desde então, me pego olhando com cuidado para a transição das cores em uma mesma flor. Sigo me encantando com os formatos e as texturas de cada uma. Criar me parece, de fato, muito próximo do ato de olhar. Olhar com atenção.
Em um dos meus textos preferidos do Freud, ele também faz esse laço com a natureza. Em uma conversa com um amigo poeta sobre a efemeridade das coisas, diz que a valorização delas se dá justamente por serem transitórias. É ainda mais belo, diz ele, justamente porque acaba. Eu acho tão bonita a forma como o Freud espia, a todo momento, para além das paredes do consultório. Ele nos deixa pistas de que a psicanálise se constitui justamente no contato com o mundo, com os outros, com a natureza, com a arte.
Tenho pensado muito nessa relação. Algumas semanas atrás, comecei uma pós que caminha justamente por esse fio entre a arte, a literatura e a psicanálise. Talvez eu esteja um pouco contagiada ou talvez esteja exercitando mais esse olhar. Mas o fato é que, quando olho para o mundo, não consigo desfazer esse laço. Tudo aparece de forma muito intrincada e enodada. Por exemplo, esses dias, enquanto assistia Professor Polvo, mergulhada em uma fotografia belíssima, também me peguei pensando em tudo isso.
Neste documentário, um cineasta, depois de passar por momento difíceis e intensos na sua vida, decide mergulhar no contato com a sua infância. Ele conta que, nos primeiros anos de sua vida, viveu muito próximo do mar. Já na vida adulta, sente um desejo de voltar a este primeiro lugar. Se muda e encontra nas águas, um sentido. Começa a gravar uma floresta subaquática e cria uma relação muito bonita com um polvo. Volta, dia após dia, para vê-lo.
Em um certo momento, o polvo perde um de seus tentáculos. E a isso se soma a voz do cineasta contando sobre esse acontecimento. Ele diz que foi inevitável entrelaçar esta perda com um momento difícil que estava vivendo em sua vida pessoal. Alguns dias depois, o tentáculo volta a nascer, brotando dali, uma nova possibilidade. É bonito ver a relação que o cineasta cria com sua própria história. Criamos e nos (re) criamos a partir deste olhar.
Prestar atenção no mundo talvez seja uma forma de nos aproximarmos dele. E assim, podemos chegar mais perto também de quem somos - no mundo. Olhar, com calma, para essas paisagens que nos cercam talvez seja, por sua vez, um exercício de encontro com nossas paisagens mais íntimas. E, assim, parece mais possível criar algo novo a partir e com elas.
“O que eu quero é estar completamente presente na minha vida - estar onde estou, contemporânea a mim mesma na minha vida, dando atenção total ao mundo, que inclui a mim. Eu não sou o mundo, e o mundo não é idêntico a mim, mas estou nele e prestando atenção nele. É isso que um escritor faz: ele presta atenção no mundo. Sou contra a noção solipsista de que é possível encontrar tudo dentro da sua cabeça. Isso não é verdade.”
-Susan Sontag
Susan Sontag, Georgia O’keefe e inúmeras outras artistas já nos deixam as pistas, então que as sigamos! Quando me pego sem inspiração, escuto suas vozes e redireciono meu olhar. Busco, curiosamente, o que me cerca. E assim, só assim, um encontro inaugural acontece.
Na clínica é assim também. Em alguns momentos, justamente quando expandimos o olhar e começamos a falar de outros pontos da nossa história, é que conseguimos nos aproximar daquele enigma sempre presente.
Que possamos, portanto, seguir exercitando o olhar. Demorar-se nos detalhes é uma forma de se aproximar da vida.
Para isso, volto à Georgia e sua maneira única de ver o mundo:
"Gostaria que você pudesse ver o que eu vejo pela janela. Os penhascos rosa e amarelos ao norte, a lua cheia e pálida prestes a se pôr em um céu lilás matinal atrás de uma bela e longa mesa coberta de árvores a oeste, colinas rosa e roxas à frente e os cedros finos e opacos, de um verde opaco, e uma sensação de muito espaço. É um mundo muito bonito."
-Georgia O’Keefe em carta para amigo
Confesso que essa frase me tocou especialmente, já que tenho uma pequena obsessão por janelas. Gosto de como elas representam essa moldura do vazio, que ganha cenário a cada momento.
Acho que as janelas também são pequenas obsessões dos artistas hahah Rosa Montero conta, em O perigo de estar lúcida, que tira uma foto da vista pela janela sempre que viaja. Ela diz que esses são registros das esquinas da sua vida no mundo. Em Vamos comprar um poeta, os personagens discutem de forma totalmente poética sobre elas. Rubel, no álbum novo, canta sobre janelas. E, nos últimos dias, ouvi um podcast em que a Lela Brandão fala sobre viver deliciosamente. Nele, ela fala sobre esse movimento sutil, mas muito simbólico, de ir até a janela e olhar.
Olhar muda o dia, é o que ela conta.
E é por isso que, assim como o texto iniciou, encerro também com uma pergunta. Talvez seja a primeira, por um outro ângulo.
O que você vê pela janela?
Que texto gostoso de ler! Me deu vontade de finalmente comprar o giz pastel que tanto ensaio comprar e tentar fazer uma observação ativa, mesmo que eu não seja boa nela.
Mariana, qual a referência dos textos do Freud e da Susan que citou? Fiquei interessada. 🫶🏼