Qual o início de uma história? Qual é a pré-história da pré-história? É o que Clarice indaga nas primeiras linhas do livro A hora da estrela. Para ela, tudo começa com um sim. Já para a psicanálise, com palavras.
São elas que antecedem uma vida. Antes mesmo de nascer já se ganha uma narrativa, um nome, uma família e uma cidade. Existe uma história que começa a ser escrita de antemão. Não se chega ao mundo para então se contar. É contado e então chega-se ao mundo.
Algum tempo atrás, conheci a artista Mariza Carpes. Fui logo capturada por uma obra formada de esboços, moldes e uma máquina de costura. O título ao mesmo tempo antecipava e inaugurava: Digo de onde venho. Ela me fez pensar, logo de início, nos caminhos que percorremos e naqueles que ainda vamos percorrer.

Luciano Mattuella, por sua vez, é um psicanalista que gosta de usar as figuras de linguagem em seus escritos. Uma em específico me tocou especialmente e condiz com a arte de Mariza. Ele vai dizer que todos nós já nascemos vestidos com uma roupa que nos foi dada. Uma vestimenta de linguagem. Uma roupa, no entanto, que não nos cabe tão bem. É no trabalho de análise, de acordo com ele, que desfiaremos e poderemos refazer uma que melhor nos vista.
Dizemos, portanto, de onde viemos. Mas podemos construir, a nosso modo, para onde vamos. Talvez algumas palavras permaneçam e outras não. Inventaremos novas marcas e novos grifos. Criaremos outra relação com os moldes que carregamos. Gosto da imagem do palimpsesto. Um papel que conserva em si as marcas de escritas anteriores, mas que abriga a possibilidade de novos escritos.
Que possamos costurar nossa própria relação com o mundo. O que é nosso e permanecerá sendo é a maneira como construímos nossa relação com a vida, com as palavras e com o nome que nos deram.
Por isso a importância de poder se desacostumar com verdades tão sólidas que construímos de nós mesmos. Existe uma possibilidade de nos estranharmos com o que é nosso! Perceber, por fim, que carregamos conosco também algo de inaugural. Acolher (e as vezes recusar) nossa herança, esta que nos antecede e acompanha ao longo da vida. Não deixar de abrir também espaço para o que é novo. Entrelaçar, de uma ponta a outra, o corte e a costura. Fio a fio, nos refazemos.
Te convido a pensar na sua história dessa forma, com a possibilidade da reinvenção. Acredito nesse caminho que permite abrigo das próprias palavras. Com elas, poder se contar e recontar. Quantas vezes forem necessárias.
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Algumas recomendações - relacionadas diretamente ou indiretamente com o tema dessa carta :)
✹ Para conhecer outras obras da artista Mariza Carpes: Mariza Carpes
✹ Para mergulhar em um livro sobre memória e reinvenção : o incrível Oração para desaparecer da autora Socorro Acioli Oração para desaparecer
✹ Uma playlist para te acompanhar na leitura ( ou na escrita de uma carta de resposta, quem sabe ♡): (entre nós) - playlist
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Te escrevo em breve!
E adoraria receber seus escritos por aqui também! Me conta como você leu o que escrevi?
Até logo ♥
(📍 Escrevi essa carta depois de sair de uma sessão da minha própria análise. É através dela que digo de onde vim e para onde quero ir. Entre herança e descoberta, é possível tecer um novo encontro com as palavras. Sessão após sessão e linha por linha, a costura toma forma e se expande —tanto que chega aqui, agora)
Que edição incrível Mari! Eu amei...
Acredito que a coragem de ser quem somos começa quando nos desfazemos das histórias que não nos pertencem mais. Honrar a nossa origem é também saber a hora de criar novos caminhos ;)
Já me conectei muito ao livro da Socorro Acioli e tenho certeza que será uma leitura que vai me marcar muito.
Mariana, esse também foi o tema da minha análise! Decidi pelo nome da minha Newsletter de Tecitura justamente pelas costuras que fiz sobre essa questão. Amei saber que isso é algo reverberando em outras cabecinhas por aí! Bom te ler 🤍