Sabia pouco, mas pelo menos sabia isto: que ninguém fala pelos outros. Que, mesmo que queiramos contar histórias alheias, terminamos sempre contando nossa própria história.
Alejandro Zambra, Formas de voltar para casa
Contamos sempre nossa própria história
Através da palavra, nos encontramos com o outro. Em cada dito, nos revelamos. Às vezes, de forma clara. Em outras, sorrateiramente. Nossos lapsos contam segredos que até então eram desconhecidos até mesmo por nós.
Recentemente, terminei de ler o lançamento da Mariana Salomão Carrara. Depois da leitura, resgatei as outras experiências que tive com os livros dela. Me encantei com “Não fossem as sílabas do sábado” e mergulhei no “É sempre a hora da nossa morte amém.” Para além dos títulos enigmáticos e belos, outro ponto me chama atenção. Tenho a sensação (depois de ouvir a Mari na Flip, ainda mais) que, em muitos momentos, ela escreve ao redor de um mesmo tema. Me parece que a cada livro, existe uma busca para dar diferentes contornos a um ponto que se repete.
Na Flip, Mariana recebeu uma pergunta: Porque em todos os seus livros o tema “luto/morte” está presente? Ela responde que, ainda que nunca tenha experenciado uma vivência assim em sua vida, está sempre em seus pensamentos. Ela diz ainda que o livro É sempre a hora da nossa morte, por exemplo, nasceu de uma brincadeira com sua amiga em torno disso. (A quem se interessar, pesquisem sobre <3 O livro é ótimo!)
Ainda na Flip, outras escritoras também falaram desse ponto que se repete e aparece, de um modo ou de outro, em seus livros. A Silvana Tavano, por exemplo, que escreveu o interessantíssimo “Ressuscitar mamutes”, contou de sua relação sempre muito próxima e curiosa em torno do tempo. O livro citado deixa transparecer muito desse enlace. Como disse Betina González: “uma autora que cria um mundo compartilha uma fantasia muito íntima (…) É algo tão corajoso quanto contar um sonho: submeter o próprio inconsciente ao julgamento de quem lê.”
Me peguei pensando então, na similaridade entre a escrita e um processo de análise. Ali, no consultório diante da analista, também existe esse movimento de encontrar novas palavras e novas formas de dizer para uma mesma coisa que se repete. E é a partir dessa repetição que o processo acontece. Ali, torna-se possível criar uma outra relação com isso que insiste.
Algo que sempre se repete
Rosa Montero escreve em A louca da casa que foi muito curioso para ela, descobrir que em todos os seus livros, por mais ficcionais que fossem, uma figura específica se repetia e das formas mais inusitadas. Às vezes mais escancarada, em outras, mais sinuosa. De algum modo, ainda que inconscientemente, algo de Rosa se revelava por meio da palavra e da escrita. Foi a partir do momento que percebeu essa repetição que pôde dar um certo contorno a ela. Interpretar e construir sentidos para o que estava sempre ao seu redor.
Comigo, já aconteceu algo similar. Há um tempo, fiz uma atividade do ESCRIterapia. Nela, me encontrava com a Gabi para trocarmos sobre os meus textos e pensarmos juntas nos caminhos que eu desejava para eles. Em certo momento, ela me pergunta: Você já percebeu que em tudo que você escreve aparece uma certa palavra?
E não, eu não tinha reparado. Até aquele momento, essa repetição me passava despercebida. Mas quando ela me aponta isso, não pude deixar de pensar em como essa repetição era simbólica. Dizia tanto da minha própria história. Dizia também, de uma tentativa. De encontrar outros lugares para uma mesma palavra. Que, em outros momentos, me causou dor. Mas agora, já podia aparecer em tom de esperança e renovação.
E então, a possibilidade de fazer diferente
Ainda que algumas palavras permaneçam, é possível criar outro contexto que as envolvam. Outra interpretação, entonação, pontuação, …
Um processo analítico também é isso: o calor do desejo - com o perdão da pieguice- vai evaporando as imagens e cenas e restam na panela os elementos significantes mínimos que dão o tempero de uma vida. Com sorte, ao final de um trabalho analítico, o analisante vai poder fazer pratos diferentes com esses temperos, vai ser capaz de criar receitas inéditas, ainda que com os mesmos ingredientes.
-Luciano Mattuella, Um itinerário íntimo pela psicanálise lacaniana
Estar em análise é criar laço com o nosso desconhecido, com aquilo que insiste em aparecer e com o que já conhecemos até demais. Durante o processo, nossas palavras passam a carregar certa surpresa. Esse tom abre muitas possibilidades.
Já é possível, então, se relacionar com a vida de outra forma. Talvez as palavras revelem, agora, esse enlaçamento completo. De uma sílaba a outra, é ali que estamos. Que possamos ouvir!
Algumas indicações:
✹ Conheça o trabalho lindíssimo da Remedios Varo:
“The dream world and the
real world are the same.” Remedios Varo, Moma
✹ Livros citados nessa News:
-É sempre a hora da nossa morte amém, Mariana Salomão Carrara
-Não fossem as sílabas do sábado, Mariana Salomão Carrara
-A árvore mais sozinha do mundo, Mariana Salomão Carrara
-Ressuscitar mamutes, Silvana Tavano
-A obrigação de ser genial, Betina González
-A louca da casa, Rosa Montero
-Um Itinerário Íntimo pela Psicanálise Lacaniana, Luciano Mattuella
✹ E uma playlist para te acompanhar na leitura ( ou na escrita de uma carta de resposta)
✹ Conheça também as últimas edições da News:
#16 Falar é encadear tempos e espaços perdidos
Rosa Montero escreve, em seu belíssimo livro O perigo de estar lúcida, que nós humanos somos pura narração, somos palavras em busca de sentido. Desde que li esse trecho pela primeira vez, fiquei capturada. Pensar no fio de palavras que nos constitui e nessa narrativa que acomodará memórias e reminiscências, é dar lugar para uma construção sempre única.
#15 Primeiras vezes (ou as pequenas inaugurações da vida)
Primeiras experiências tem um gosto diferente. Ainda mais quando elas são vivenciadas na vida adulta. Na infância, é esperado que experimentemos o mundo. Mas aos poucos, nos acomodamos com o que já conhecemos. Limitamos e contornamos, pouco a pouco, nossos espaços.
#14 Digo de onde venho
Qual o início de uma história? Qual é a pré-história da pré-história? É o que Clarice indaga nas primeiras linhas do livro A hora da estrela. Para ela, tudo começa com um sim. Já para a psicanálise, com palavras.
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Te escrevo em breve!
E adoraria receber seus escritos por aqui também! Me conta como você leu o que escrevi?
Até logo ♥
(📍 Terminei essa edição no dia 01 de novembro. Novo mês que chega e anuncia diferentes possibilidades - também é o mês do meu aniversário. Tomando meu café, faço os últimos ajustes. Demorei a finalizar essa carta, não sei bem o motivo, talvez porque ela revele muito de mim nas entrelinhas.)
Adorei seu escrito. Nunca tinha te lido. Cheguei aqui por alguma news (não sei qual rs) e fiquei feliz em saber que terminou de escrever esta carta no dia do meu aniversário :)
Gostei de algo que li aqui e fiquei! Nem sei bem. Acho que li como que em diálogo com você, também tentando ouvir as minhas palavras, aquelas que se repetem.